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Artigo escrito por Leonardo Roscoe Bessa. Doutor em Direito Civil (UERJ), Mestre em Direito Público (UnB), Professor do Uniceub (DF) e Procurador de Justiça do MPDFT.
O direito à autodeterminação informativa se constitui na faculdade que toda pessoa tem de exercer, de algum modo, controle sobre seus dados pessoais, garantindo-lhe, em determinadas circunstâncias, decidir se a informação pode ser objeto de tratamento (coleta, uso, transferência) por terceiros, bem como acessar bancos de dados para exigir correção ou cancelamento de informações. Objetiva-se, em última análise, assegurar que “right data are used by the right people for the right purposes” (Paul Siehgart, Privacy and Computer, Londres: Latimer, 1976).
Cuida-se, para maioria dos autores, de aspecto do direito à privacidade, que, no Brasil, apesar da gênese constitucional (artigo 5o, inciso X, da Constituição Federal), somente nos últimos anos ganhou a atenção do legislador infraconstitucional, com destaque para edição da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18), cujo início de vigência se deu em 18 de setembro de 2020.
A história da evolução jurídica do direito à privacidade, embora não se inicie em 1890, encontra neste ano um famoso marco: o artigo The right to privacy de Samuel D. Warren e Luis Brandeis, publicado na Havard Law Review, no dia 15 de dezembro. No texto, que foi uma reação ao exagero da imprensa em divulgar mexericos do salão a respeito da mulher de Samuel Warren, desenvolveu-se a clássica definição da expressão “right to be let alone”, cunhada alguns anos antes pelo juiz Thomas Cooley.
Bastante citado, também, é trecho do discurso, no Parlamento Britânico, de Lord Chatam, referente a ordens gerais de arrestos: “o homem mais pobre pode, em sua casa, desafiar todas as forças da Coroa. Essa casa pode ser frágil – seu telhado pode mover-se – o vento pode soprar em seu interior – a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar – mas o Rei da Inglaterra não pode entrar – seus exércitos não se atreverão a cruzar o umbral da arruinada morada”.
Para não alongar demais: uma última referência à evolução histórica do direito à privacidade. Trata-se de decisão proferida pelo Tribunal Civil do Sena (França), em julgamento realizado no dia 16 de junho de 1858. Cuidava-se de famosa atriz de teatro clássico francês do Século XIX, chamada Rachel, que teve morte prematura aos 38 anos, vítima de tuberculose.
A irmã, atendendo a pedido da atriz, contratou dois fotógrafos para reproduzir a imagem de Rachel no seu leito de morte. Apesar de os fotógrafos terem sido advertidos para não tornarem públicas as fotografias, estas foram divulgadas no semanário L’Iustration. A ação foi ajuizada pela irmã de Raquel, tendo o Tribunal, presidido por Benoit Champy, estabelecido que “a ninguém seria dado o direito de, sem consentimento formal da família, reproduzir e dar publicidade a traços de uma pessoa em seu leito de morte por maior que tivesse sido sua celebridade e a publicidade ligada aos atos de sua vida”.
O direito à privacidade se desenvolveu no século XX para abranger aspectos diversos que vão além da proteção da casa, do direito ao esquecimento, e do direito de ser deixado em paz.
Atualmente, em tempos de Big Data, a preocupação, expressamente consignada no art. 2º da LGPD, concentra-se na ameaça ao “livre desenvolvimento da personalidade”, expressão que abrange meios e escolhas individuais para realização pessoal e, paralelamente, o “relacionar-se” com a sociedade (poder público e entes privados).
Hoje somos permanentemente “julgados” por perfil digital. A partir de tratamento de dados pessoais, é a tela do computador que indica se somos merecedores de crédito, se podemos ter acesso a algum benefício social ou, até mesmo, ingressar em determinado país
Aliás, muitas vezes, por meio de decisão automatizada, em vez de “apenas” mostrar o perfil pessoal, o computador, embalado por misteriosos algoritmos, decidirá sobre aspectos relevantes da vida do cidadão e do consumidor.
Já em 1967, em clássica obra (Privacy and Freedom, Nova Iorque, Atheneum), Alan Westin advertia que, para manter a privacidade na era moderna, o indivíduo precisava ter a possibilidade de definir quando, como e quais as informações pessoais poderiam ser comunicadas a terceiros. Foi, entretanto, somente em dezembro de 1983 que este aspecto da privacidade foi denominado de “direito a autodeterminação informativa”, pelo
Tribunal Constitucional da Alemanha, que declarou parcialmente inconstitucional uma lei, aprovada pelo Parlamento em 1982, que disciplinava o censo populacional.
Havia na época previsão de uma ampla coleta da dados na Alemanha. De acordo com a lei questionada, aquele que se recusasse a responder a todas as perguntas teriam que arcar com pesadas multas. Pretendia-se não apenas a elaboração de quadro estatístico e demográfico, mas também a formação de banco de dados para posterior confronto com outros já existentes em agências federais e estaduais, permitindo-se a correção de informações armazenadas anteriormente, bem como a utilização das novas informações para objetivos determinados vinculados à natureza das agências.
A possibilidade de utilização de dados nessas circunstâncias gerou na opinião pública o temor de que as informações fossem utilizadas para controlar a atividade e comportamento dos cidadãos, gerando provocação da Corte Constitucional que, em provimento cautelar, suspendeu a execução do recenseamento.
Após profundas considerações a respeito dos diretos da personalidade frente aos riscos da informática, decidiu-se que o indivíduo tinha direito de decidir sobre o uso e a cessão dos dados pessoais. A limitação do direito seria admissível diante de relevante interesse geral ou por norma clara que atendesse ao princípio da proporcionalidade.
A expressão o direito “à autodeterminação informativa” é um dos fundamentos expressos da LGPD (art. 2º), ao lado da “privacidade” e da “intimidade”. É fato que o legislador, inseguro com a ausência de amadurecimento e rigor técnico, preferiu “pecar por excesso” ao utilizar vários termos que, em última análise, conduzem à preocupação com o livre desenvolvimento da personalidade.
Todavia, mais importante do que rótulo é a atual compreensão da relevância, significado e, também, limites do direito à autodeterminação informativa. De um lado, a inquestionável transcendência da proteção de dados pessoais e, de outro, pontos, que embora sedimentados na legislação e doutrina, nem sempre são claros para alguns.
O direito à autodeterminação informativa não é absoluto. Pode, em confronto com o interesse público ou outros valores constitucionais, sofrer restrições pelo legislador e intérprete. Tal ponto foi, inclusive, destacado pela decisão proferida pela Suprema Corte alemã no julgamento em 1983 e, também, ressaltado, recentemente, pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do pedido cautelar proferida na ADI 6.387. Na ocasião, a Corte analisou a constitucionalidade da MP 954/2020 a qual previu o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a produção de estatística oficial durante a pandemia da Covid-19.
Foi deferida a cautelar com crítica à finalidade genérica (fazer entrevistas) para produção de estatística oficial sobre a pandemia do novo coronavírus. Paralelamente, foram indicados dois importantes pontos: 1) é possível reconhecer base constitucional ao direito à privacidade e proteção de dados pessoais: 2) direito à proteção de dados não é absoluto e, portanto, pode ser restringido pelo legislador.
Nesse debate, cabe acrescentar que se cuida de direito e não dever de privacidade. A vontade do titular é legítima e tem força para delimitar seus contornos. Em outras palavras, existe grau de disponibilidade do direito, tanto é que o consentimento informado (art. 7º, I, da LGPD) é uma das bases para o tratamento regular de dados.
Ao lado das possibilidades de restrição do direito pelo titular e pelo legislador, o intérprete também possui espaço para, com base na proporcionalidade, definir os contornos do direito à autodeterminação informativa em face da base autorizadora do legítimo interesse, ou seja, o tratamento de dados está autorizado “quando necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais” (art. 7º, IX, da LGPD).
Em conclusão: 1) Em que pesem algumas divergências conceituais, particularmente para eventual distinção em relação ao direito à proteção de dados, o direito à autodeterminação informativa decorre da Constituição Federal e da LGPD; 2) Por não ser direito absoluto, pode sofrer restrição pelo legislador, desde que presente o interesse público ou outro direito de igual relevância; 3) a autonomia de vontade do titular também pode restringir o direito à autodeterminação informativa; 4) o intérprete e aplicador do direito está autorizado, por intermédio da base legal do legítimo interesse, a traçar, em casos concretos, novos contornos à autodeterminação informativa.
Artigo escrito por Leonardo Roscoe Bessa. Doutor em Direito Civil (UERJ), Mestre em Direito Público (UnB), Professor do Uniceub (DF) e Procurador de Justiça do MPDFT.
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